
Capitulo 18
“Carlos, tenho quase tocado a extrema desta minha peregrinação. A minha Ilíada está no último canto. Quero dizer-te que é esta a minha penúltima carta.
Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguém gosta de contar as suas mágoas ao vento. É belo dizer-se que um gemido nas asas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao coro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar à avezinha gemedora os segredos do nosso pensar. Tudo isto é delicioso de uma puerilidade inofensiva ; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas coisas, nem engenho para estes artifícios.
Vou contando as minhas penas a um homem que não pode zombar de minhas lágrimas, sem trair a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do talento. Sabes qual é o meu egoísmo, o meu estipêndio neste trabalho, nesta franqueza de alma, que ninguém te pode disputar como único em merecê-la ? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angélica Micaela. Diz-me o que a tua alma te disse ; não tenhas pejo em denunciá-la ; associa-te um momento à minha dor, e dize-me o que farias se tivesses sido Henriqueta.
Aqui tens o prólogo desta carta ; agora vamos espreitar o lance extraordinário daquele encontro, em que deixamos o visconde e a… Como hei-de chamar-lhe ?… A viscondessa, e a sua Exma Filha D. Laura.
- “Pois é possível existires ?” ─ perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.
- “Pois não me conheces, António ?” ─ respondia ela com estúpida naturalidade.
- “Tinham –me dito que morreras…” ─ tornou ele com desasada hipocrisia. ─ “Tinham-me dito, há dezessete anos, que tu e nossa filha tínheis sido vítimas da cólera-morbo…”
- “Felizmente que lhe mentiram” ─ interrompeu Laura com afectada meiguice. ─ “Não é que lhe tínhamos rezado por alma, e nunca deixámos de pronunciar o seu nome em saudosas lágrimas.”
- “Como tendes vivido ?” ─ perguntou o visconde.
- “Pobre, mas honradamente” ─ respondeu Josefa, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céu por testemunha.
- “Ainda bem !” ─ tornou o visconde ─ “mas que modo de vida tem sido o vosso ?”
- “O trabalho, meu querido António, o trabalho de nossa filha tem sido o amparo da sua honra e da minha velhice. Tu abandonastes-nos com tamanha crueldade !… Que mal te fizemos-nós ?”
- “Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas ?” ─ respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancara duas volumosas lágrimas, tanto a propósito.
- “O passado, passado” ─ disse Laura, afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de inocência capazes de iludir S. Simão Estilista. ─ “Quer o pai saber” (prosseguiu ela com sentimento) “qual tem sido a minha vida ? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que encontra sua filha… Tenho sido modista, tenho trabalhado incessantemente… Tenho lutado com as tentações da penúria, e tenho feito consistir em minhas lágrimas o meu triunfo…”
- “Bem, minha filha” ─ interrompeu o visconde com sincera contrição ─ “esqueçamos o passado… De hora em diante será a abundância o prémio da tua virtude… Ora diz-me : o mundo sabe que tu és minha filha ?… Disseste a alguém que era teu marido, Josefa ?”
- “Não, meu pai.” ─ “Não, meu Antoninho.” ─ responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas.
- “Pois bem,” ─ continuou o visconde ─ “vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras. De hora avante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não podes chamar-te Laura. Serás Elisa, compreendes-me ? É necessário que te chames Elisa…”
- “Sim, meu pai… Eu serei Elisa” ─ atalhou a inocente modista com impetuosa alegria.
- “É necessário abandonar Lisboa” ─ prosseguiu o visconde.
- “Sim, sim, meu pai… Vivamos num sertão… Quero gozar, sozinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai…”
- “Não iremos para um sertão… Vamos para Londres ; mas… atendam-me… é preciso que ninguém as veja, nestes primeiros anos, principalmente em Lisboa… A minha posição actual é muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto de Lisboa ; partiremos nos primeiro paquete… Josefa, repara em ti, e vê que és viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquina para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um dia, e terás então suprido com a educação prática a rudeza que indispensavelmente tens.”
Não progrido, neste diálogo, Carlos. O programa do visconde foi rigorosamente cumprido.
Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com esta família. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio dizer-me que acabava de ver, elegantemente trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura.
Acrescentou várias circunstâncias da vida desta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento a quem tal mulher estava associada.
Vasco pediu a lista dos hóspedes, e viu que os únicos portugueses eram Vasco de Seabra e sua irmã, e o visconde do Prado, a sua mulher, e sua filha D. Elisa Pimentel.
Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se de uma ilusão.
No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patrício, que lhe explicasse aqueles gritos bárbaros dos serventes do hotel, que lhe davam água por vinho. Vasco não duvidou em ser intérprete do visconde, contanto que as suas luzes em língua inglesa pudessem chegar ao esconderijo donde nunca mas vira sair a suposta Laura.
Correram as coisas à medida do seu desejo. Na noite desse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me deste temor, afiançando-me que se tinha iludido com a semelhança das duas mulheres.
Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artifício tirou maior partido das maneiras adquiridas em hábitos libertinos. Elisa era uma mulher de corte, com os ademanes fascinadores dos salões, onde a imoralidade do coração passeia de braço dado com a ilustração do espírito. O som da palavra, a escolha da frase, a compostura airosa da mímica, o tom sublime em que as suas ideias eram voluptuosamente lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crer que Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada à feição do meu espírito.
Quando agora pergunto à minha consciência como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os anos consumidos no cultivo da inteligência, e chego a persuadir-me que a escola da devassidão é a antecâmara por onde mais fácil se entra no mundo da graça e da civilização.
Perdoa-me o absurdo, Carlos ; mas há mistérios na vida que só pelo absurdo se explicam.
Henriqueta.”
“Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lágrimas, e o coração de reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a injustiça de te julgar infeccionado deste marasmo de egoísmo que entorpece o espírito, e calcina o coração. E, demais, supunha-te insensível pelo facto de seres inteligente. Eis aqui um disparate, que eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concílio permanente para condenar, em nome de não sei que tolas conveniências, as heresias do _cadê.
Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em _cadê, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes.
O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobra a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da _cadê. Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutem o talento com a sabedoria.
Porque é mau o homem de talento ? Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado ? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca ?
Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças _cadêmicas !
Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica : os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento : são os vândalos do mundo espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército.
Ai tem, ─ acrescentou ele ─ a razão por que o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe e _emônio_ia da tração. A mulher que lhe ouve o astucioso hino das suas apaixonadas lamúrias, acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando contra o seu algoz, e pedindo à sociedade que grite com ela.
Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos acreditar este doido. Eu por mim não me satisfaço com o seu sistema, todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o prisma do doido, até encontrar as cores inalteráveis do juízo.
Seja o que for, eu creio que és uma excepção e não sofra com isto a tua modéstia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que sofrias, escrevendo-a. Hás-de continuar a visitar-me espiritualmente na minha Tebaida, sem cilícios, sim ?
Agora conclua-se a história, que leva seus visos de folhetim filosófico, moral, social, e não sei que mais por aí se diz, que não vale nada.
Contraí amizade com a filha do visconde do Prado. Não era ela, porém, tão íntima que me levasse a declarar-lhe que Vasco de _emôni não era meu irmão. Por ele me fora imposto, como preceito, o segredo de nossas relações. Bem longe estava eu de compreender este zelo de virtuosa honestidade, quando a mão de um _emônio me tirou a venda dos olhos.
Vasco amava Laura !! Eu pus dois pontos de admiração, mas acredita que foi uma urgência retórica, uma composição artística, que me obrigou a admirar-me, escrevendo, de coisas que me não admiram, pensando.
Que é o que levou tão depressa este homem a aborrecer-me, pobre mulher, que desprezei o mundo, e me desprezei a mim própria para satisfazer-lhe o capricho de alguns meses ? Foi uma miséria que ainda hoje me envergonha, suposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das faces dele… Vasco amava a filha do visconde do Prado, a Laura de alguns meses antes, porque a Elisa de hoje era a herdeira de não sei quantos centos de contos de réis.
Devo envergonhar-me de ter amado este homem, não é verdade, Carlos ? Não devo sofrer um instante a perda de um miserável, que eu vejo daqui com uma grilheta de ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para não ouvir-lhe o ruído… a sentença do forçado que o segue até ao fim de uma existência farta de opróbrio, e célebre de infâmias !
E não sofro, Carlos ! Tenho aqui no seio uma úlcera que não tem cura… Choro, porque é intensa a dor que ela me causa… Mas, olha, não tenho lágrimas que não sejam remorsos… Não tenho tenho remorsos que não sejam picados pela afronta que fiz a minha mãe, e a meu irmão… Não me dói o meu próprio aviltamento, não ! Se em minha alma cabe algum entusiasmo, algum desejo, é o entusiasmo da penitência, é o desejo de torturar-me…
Fugi tanto da história, meu Deus !… Desculpa estes desvios, meu paciente amigo !… Eu queria correr muito sobre o que falta, e hei-de consegui-lo, porque não posso parar, e temo de me converter em estátua, como a mulher de Loth, quando olho com atenção para o meu passado…


















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