Juraria, pelo menos, que aquela mulher não era estúpida. E, seja dito sem tenção ofensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais fácil descobrir um mundo novo que uma mulher ilustrada. É mais fácil ser Cristóvão Colombo que Emílio Girardin.
O cetim, ouvida a resposta do veludo, ofereceu-lhe o braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.
- « Conheço » ─ diz ele ─ « que o teu contacto me espiritualiza, belo dominó… »
- « Belo, me chamas tu !… É realmente uma leviandade que te não faz honra !… Se eu levantasse esta sanefa de seda, que me faz bonita, ficavas como aquele poeta espanhol que soltou uma exclamação de terror na presença de um nariz… que nariz não seria, santo Deus !… Não sabes essa história ? »
- «Não, meu anjo ! »
- « Meu anjo !… Que graça ! Pois eu ta conto. Como o poeta se chama não sei, nem importa. Imagina tu que és um poeta, fantástico como Lamartine, vulcânico como Byron, sonhador como MacPherson e voluptuoso como Voltaire aos 60 anos. Imagina que o tédio desta vida chilra que se vive no Porto te obrigou a deixar no teu quarto a pitonissa descabelada das tuas inspirações, e vieste por aqui dentro a procurar um passatempo nestes passatempos alvares de um baile de Carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinária de espírito, um anjo de eloquência, um demónio de epigrama, enfim, uma destas criações miraculosas que fazem rebentar uma chama improvisa no coração mais de gelo, e de lama, e de toucinho sem nervo. Ris ? Achas nova a expressão, não é assim ? Um coração de toucinho parece-te uma ofensa ao bom senso anatómico, não é verdade ? Pois, meu caro dominó, há corações de toucinho estreme. São os corações, que resumam óleo em certas caras estúpidas… Por exemplo… Olha este homem redondo, que aqui está, com as pálpebras em quatro refegos, com os olhos vermelhos como os de um coelho morto, com o queixo inferior pendente, e o lábio escarlate e vidrado como o bordo de uma pingadeira, orvalhada de banha de porco… Esta cara não te parece um grande rijão ? Não crês que este baboso tenha um coração de toucinho ? »
- « Creio, creio ; mas fala mais baixo que o desgraçado está gemer debaixo do teu escalpelo… »
- « És tolo, meu cavalheiro ! Ele entende me lá !… É verdade, aí vai a história do espanhol, que tenho que fazer… »
- « Então queres deixar-me ? »
- « E tu ?… Queres que eu te deixe ? »
- « Palavra de honra que não ! Se me deixas, retiro-me… »
- « És muito amável, meu querido Carlos… »
- « Conheces-me ? ! »
- « Essa pergunta é ociosa. Não és tu Carlos ! »
- « Já falaste comigo na tua voz natural ? »
- « Não ; mas começo a falar agora. »
E com efeito falou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metálica e insinuante. Cada palavra daqueles lábios misteriosos saía vibrante e afinada como a nota de uma tecla. Tinha aquele não-sei-quê que só escuta nas salas onde falam mulheres distintas, mulheres que obrigam a gente a prestar fé aos privilégios, às prerogativas, aos dons muito peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem.
« Uma aventura de romance ! » dizia ele lá consigo, enquanto o dominó-veludo, conjecturando o enleio em que pusera o seu entusiasta companheiro, continuava a fazer gala do
mistério, que é de todas as alfaias aquela que mais alinda a mulher ! Se elas pudessem andar sempre de dominó ! Quantas mediocridades em inteligência rivalizariam com Jorge Sand ! Quantas fisionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abal el-Kader !
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