Capitulo 3
- « Então quem sou eu ? » ─ prosseguiu ela. ─ « Não me dirás ?… Não dizes… Pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota… Fiquemos nisto, sim ? »
- « Enquanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te de « anjo » . »
- « Como quiseres ; mas sinto dizer-te que não és nada original ! Anjo !… É um apelido tão safado como Ferreira, Silva, Souza, Costa… et cetera. Não vale a pena questionarmos : baptiza-me à tua vontade. Ficarei sendo o teu « anjo de Entrudo ». E a história ?… Imagina que te possuías de um amor impetuoso por essa mulher, que fantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um sorriso afectuoso através da máscara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dois, três anos depois. E essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais literata, cada vez mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia, indecentíssima de nariz, horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as tuas cândidas ilusões, levantando a máscara. Tu que a não crês, instas, suplicas, abrasas-te num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás capaz de lhe dizer que te abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina, Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva para te aguar a poesia desses nomes, que, na minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos para as máscaras, que a fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta naquele manto negro. Por fim, a tua perseguição é tal que a desconhecida Desdémona finge assustar-se, e sai contigo ao salão do teatro para levantar a máscara. Arfa-te o coração na ansiedade de uma esperança : sentes o júbilo do cego de nascimento, que vai ver o sol ; estremeces como a criança a quem vão dar um bonito, que ela não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu coração infantil ambiciona neste mundo… Ergue-se a máscara !… Horror !… Vês um nariz… Um nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um nariz maio que o do duque de Choiseul, onde cabiam três jesuítas a cavalo !… Recuas !… Sentes despregar-se-te o coração das entranhas, coras de vergonha e foges desabridamente… »
- « Tudo isso é muito natural. »
- « pois não há nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto, que é o mais interessante para o mancebo que faz do nariz de uma mulher o termómetro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina, meu jovem Carlos, que saíste do teatro depois, e entraste na Águia de Ouro a comer ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te aparecia o fatídico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e imóvel, como a larva das tuas asneiras, cuja memória procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho… Perturba-se-te a digestão, e sentes contracções no estômago, que te ameaçam com o vómito. A massa enorme daquele nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não podes levar à boca um bocado do teu apetitoso manjar sem um fragmento daquele fatal nariz à mistura. Queres transigir com o silêncio do dominó ; mas não podes. A inexorável mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente sarcástico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos ?”
- “Há aí crueldade de mais… O poeta devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a indulgência não só para as grandes afrontas, mas até para os grandes narizes.”
- “Será ; mais o poeta, que transgrediu a sublime missão de generosidade para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina que aquela mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a máscara. O poeta ergue-se, e vai fugir com grande escândalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do boticário de Nicolau Tolentino. Mas… Vingança do céu !… aquela mulher ao levantar a máscara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa ver a mais famosa cara que o céu alumia há seis mil anos ! O espanhol que ajoelhar àquela dulcíssima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repele-o com um gesto, onde o desprezo está associado à dignidade mais senhoril.
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