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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Pupila Pénultimo Capítulo

Posted by Anônimo | quinta-feira, outubro 13, 2011


Capitulo 24
O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu genro. Vasco não sei como recebeu o convite ; o que eu sei é que os vínculos destas relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia, expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas intimidades eram o prólogo de outra que tu avaliarás. Foi ela a própria que me disse que esperava ainda poder chamar-me irmã ! Isto é uma atrocidade sublime, Carlos ! Diante dessa dor calam-se todas as agonias possíveis ! O insulto não podia ser mais despedaçador ! O punhal não podia entrar mais dentro no virtuoso coração da pobre amante de Vasco de Seabra !… Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu amigo ! Tenho direito à tua compaixão, se não podes estremecer de entusiasmo diante do heroísmo de uma mártir ! Ouvi este anúncio dilacerante !… Senti fugir-me o entendimento… Aquela mulher sufocou-me a voz na garganta… Horrorizei-me não sei se dela, se dele, se de mim… Nem uma lágrima !… Acreditei-me doida… Senti-me estúpida daquele idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos vêem nos lábios um sorriso de imbecilidade…
Elisa parece que recuou aterrada da expressão da minha fisionomia… Fez-me não sei que perguntas… Não me lembro mesmo se aquela mulher permaneceu diante de mim… Basta !… Não posso prolongar esta situação…
Na tarde desse mesmo dia, chamei uma criada da hospedaria. Pedi-lhe que me vendesse algumas jóias de pouco valor que eu possuía ; eram minhas ; minhas não… Eram um roubo que eu fiz a minha mãe.
Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois do almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas :

“Vasco de Seabra não pode gloriar-se de ter desonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna de uma coroa de virgem, virgem do coração, virgem na sua honra, quando abandonava um vilão, que não pôde infectar da sua infâmia o coração da mulher que arrastou ao abismo da sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providência que a salvou !”

Deixei este escrito sobre as luvas de Vasco, e fui à estação dos caminhos de ferro.
Dois dias depois entrava um paquete.
Ao ver a minha pátria, cobri o rosto com as mãos, e chorei… Era a vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma inspiração do céu. Saltei numa catraia, e pouco depois achava-me nesta terra, sem um conhecimento, sem o apoio e sem subsistência para muitos dias.
Entrei em casa de uma modista, e pedi obra. Não ma negou. Aluguei uma água-furtada, onde trabalho há quatro anos ; onde, há quatro anos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os cilícios do meu remorso.
Minha mãe e meu irmão vivem. Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não haja um indício da minha vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me denuncies, pela tua honra e pela sorte de tuas irmãs.
Sofia… (lembras-te de Sofia ?) Essa é uma pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insípidas aquelas horas em que me acompanhaste… Foi uma rival que não honra ninguém… Uma Laura com os respeitos públicos, e as considerações que se barateiam a corpos ulcerosos, contando que se vistam de veludos matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante dessa mulher me dava aquele anel, que viste, como oblação de sacrifício que me fazia de um rival…
Escreve-me.
Hás-de ouvir-me no próximo Carnaval.
Por último, Carlos, deixa-me fazer-ta uma pergunta : Não me achas mais defeituosa que o nariz daquela andaluza da história que te contei ?
Henriqueta.”

É natural a exaltação de Carlos, depois de erguido o véu, em que se escondiam os mistérios de Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do belo e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca impressão na vida que mais lhe incendiasse uma paixão.

As cartas a Ângela Micaela eram o desafogo do seu amor sem esperança. Os mais ferventes êxtases da sua alma de poeta, imprimiu-os naquelas cartas escritas debaixo de uma impressão que lhe roubava a tranquilidade do sono, e o refúgio de outros afectos.
Henriqueta respondera concisamente às explosões de um delírio que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flor do coração. Esterilizaram-lhe a árvore dos belos frutos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e ironia os instintos do carinho brando, que acompanham a mulher até a sepultura.
Carlos não podia suportar uma repulsa nobre. Persuadira-se que havia um escalão moral para todas. Confiava no seu ascendente em não sei que mulheres, entre as quais lhe não fora penoso nunca fixar o dia do seu triunfo.
Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O amor-próprio, angustiado nos apertos de uma impossibilidade invencível, adquire uma nova feição, e converte-se em paixão, como as paixões primeiras, que nos sopram a tempestade no límpido lago da adolescência.
Carlos, em último recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No lance extremo de um desafogo, iria ele, audacioso, humilhar-se aos pés daquela mulher, que a não poder amá-lo, choraria com ele ao menos.
Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe ocorreu a astuciosa lembrança de surpreender a morada de Henriqueta surpreendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas, subscritas a Ângela Micaela.
Conseguiu o comprometimento de um empregado do correio, Carlos empregou nesta missão um vigia insuspeito.
O que a entregou fez um sinal a um homem que passeava no corredor, e este homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo Ovídio. Feliz das vantagens que lucrara em tal comissão, correu a encontrar-se com Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado mancebo, espiritualizado por algumas libras, correu à indicada casa. Em honra de Carlos, é necessário dizer que aquelas libras representavam a eloquência com que ele tentaria mover a velha em seu favor, por isso que, à vista das informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que não era ali a residência de Henriqueta.
Acertou.
A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiúca, quando Carlos se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para dizer-lhe duas palavras.
A velha, que não podia recear alguma agressão traiçoeira aos seus virtuosos oitenta anos, franqueou os umbrais da sua pocilga, e prestou ao seu hóspede a cadeira única do seu camarim de tecto de vigas e pavimento de lajes.
Carlos principiou como devia o seu ataque. Lembrado da chave com que Bernardes manda fechar os sonetos, aplicou-a à abertura da prosa, e conheceu de pronto as vantagens de ser clássico, quando convém. A velha, quando viu cair no regaço duas libras, sentiu o que nunca sentira a mais carinhosa das mães, com dois filhinhos no colo. Luziram-lhe os olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos seus vinte e cinco anos.
Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes termos :
“Esse pequeno donativo, que lhe faço, há-de ser repetido, se vossemecê me fizer um grande serviço, que pode fazer-me. Vossemecê recebeu, há pouco, uma carta, e vai entregá-la a uma pessoa, cuja felicidade está nas minhas mãos. Estou certo que vossemecê não há-de querer ocultar-me a morada dessa senhora, e privá-la de ser feliz. O serviço que tenho a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este ; pode fazer-mo ?”
A frágil mulher, que não se sentia bastante heroína para ir de encontro à legenda que D. João V fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas reflexões e denunciou o santo asilo das lágrimas de Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, frágil à tentação de ouro, que lhe roubara um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado refúgio.
Poucas horas depois, Carlos entrava em uma casa da Rua dos Pelames, subia a um terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta. Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéu de senhora : bateu ; perguntaram de dentro quem era, o rapaz falou, e a porta foi imediatamente aberta.
Henriqueta estava sem dominó na presença de Carlos.
Foi sublime esta aparição. A mulher que Carlos viu, não saberemos nós pintá-la. Era o original dessas esplêndidas iluminuras que o pincel do século XVI fazia saltar da tela, e consagrava a Deus, denominando-as Madalena, Maria Egipcíaca e Margarida de Cortona.

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