Capitulo 1
Na última noite do Carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mês de Fevereiro, do corrente ano, pelas 9 horas e meia da noite entrava no Teatro de S. João, desta heróica e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de cetim.
Dera ele os dois primeiros passos no pavimento da plateia, quando um outro dominó de veludo preto veio colocar-se-lhe frente a frente, numa contemplação imóvel.
O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indiferença natural.
O segundo, momentos depois, aparecia ao lado do primeiro, com a mesma atenção, com a mesma penetração de vista.
Desta vez o dominó-cetim aventurou uma pergunta naquele desgracioso falsete, que todos nós conhecemos :
- « Não quer mais do que isso ? »
- « Do qu’isso !… » ─ respondeu uma máscara que passava por casualidade, esganiçando-se numa risada que raspava o tímpano. ─ « Olha do qu’isso !… Já vejo que és pulha !… »
E retirou-se repetindo ─ « Do qu’isso… do qu’isso… ».
Ma o dominó-cetim não sofreu, ao que parecia, a menor contrariedade com esta charivari. E o dominó-veludo nem sequer acompanhou com os olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna da pergunta, fosse ela qual fosse.
O cetim (fique assim conhecido para evitarmos palavras e tempo, que é um preciosíssimo cabedal), o cetim, desta vez, encarou com mais alguma reflexão o veludo. Conjecturou suposições fugitivas, que se destruíam mutuamente. O veludo era forçosamente uma mulher. A pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria ; a delicadeza da mão, que protestava contra o ardil mentiroso de uma luva larga ; a ponta de verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciara debaixo da fímbria do veludo, este complexo de atributos, quase nunca reunidos em um homem, captaram as sérias atenções do outro, que, incontestavelmente, era um homem.
- « Quem quer que sejas » ─ disse o cetim ─ « não te gabo o gosto ! Tomara eu saber o que vês em mim, que tanta impressão te faz ! »
- « Nada » ─ respondeu o veludo.
- « Então, deixa –me, ou diz-me alguma coisa ainda que seja uma sensaboria, mais eloquente que o teu silêncio. »
- « Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espírito, e seria um crime de lesa-Carnaval se te dissesse alguma dessas graças salobras, capazes de fazer calar para todo o sempre um Demóstenes de dominó.
O cetim mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse com rudeza no princípio, porque, em Portugal, um dominó em corpo de mulher, que passeia « sozinha » num teatro, permite umas suspeitas que não abonam as virtudes do dominó, nem lisonjeiam a vaidade de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a mulher em quem recai semelhante hipótese não conhece Demóstenes, nem diz lesa-Carnaval, nem aguça a frase com o adjectivo salobras.
O cetim arrependeu-se da aspereza com que recebera os atenciosos olhares daquela incógnita, que principiava a fazer-se valer como tudo aquilo que apenas se conhece por uma face boa. O cetim
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